É difícil transcrever em palavras os sentimentos que me envolveram ao assistir esse filme. Diria que, indescritível, não estivesse eu cá vos escrevendo. Mas é justamente com tal intuito que criei este blog. Escrever como o cinema me afeta e como me deixo afetar, conjecturando as perdas e os ganhos advindos disso.
Confesso que uma certa melancolia pesou-me a cabeça ao final da obra. E de fato, Bela Tarr não costuma nos iludir com alegrias baratas; muito pelo contrário, ele cria com o propósito de nos desestabilizar. E eu gosto. Sair da zona de conforto pode ser uma tarefa árdua, mas quando superada, a satisfação é igual, muitas vezes maior, do que se continuássemos naquele ponto de fixação. E ai a psicanálise nos diz que, quando frustrados tendemos a regredir no processo de maturação individual e voltamos ao ponto de fixação, estagnamos no lugar que nos reconforta e o processo se repete. Em outras palavras, é comum assistirmos a um filme que nos desconcerta, que nos desconstrói e abala nosso psicológico e depois, sem recursos suficientes para lidarmos com o choque, sentimos a necessidade de assistir uma animação ou uma daquelas comédias previsíveis que nos faz parar de pensar. Com filmes de terror geralmente é assim, para não restar dúvidas do que estou falando.
Danação, por sua vez não é terror, mas é acachapante. A história acompanha dois personagens melancólicos buscando sentido para suas respectivas existências. Uma mulher misteriosa cantora de cabaré que almeja maior reconhecimento (Vali Kerekes) e Karrer (Miklós Székely B.), um solitário apaixonado por aquela, que esnobado procura aproximar-se dela através de seu marido. Uma premissa simples, mas dirigida magistralmente e de uma forma inusual. Bem, pelo menos quando falamos em padrões cinematográficos.
Com poucos cortes e incansavelmente contemplativo, o filme é todo construído para transmitir a monotonia melancólica da existência. A começar pelo cenário desolado do pós-guerra da Hungria com chuvas torrenciais constantes; a ausência de trilha sonora dando lugar ao som intempestivo dos ventos e os bares decrépitos com alguns poucos preteridos divertindo-se à escusa. É dentro dos bares apenas, que a trilha sonora se faz presente e onde Karrer vive sua vida miserável, gastando o dinheiro que não tem para se afundar cada vez mais nas bebidas e ver a vida passar ao som de músicas penosas, lentamente ritmadas. Os bares funcionam como representações da decadência e o vazio existencial que o filme busca expressar. Um deles, inclusive é sugestivamente denominado de "titanik bar". E seguramente eu posso dizer que é nele que acontece uma das cenas mais lindas que eu já vi em filmes. A personagem de Vali Kerekes faz uma performance maravilhosa, cantando lindamente as dores da humanidade, desolada num canto, o olhar baixo, a cabeça que não se levanta, pesada, cansada.
As atuações, por sinal, são ótimas. Os atores incorporam o sentimento e conseguem transmiti-los através dos olhares e expressões corporais. Ressentidos por desejos impossíveis, a resignação os corrói e a mediocridade é o que resta. Diante da vida que passa a mesquinhez parece ser o pathos almejado por Bela Tarr em sua arte. Representando uma das muitas facetas da vida humana, a solidão é um terreno que pode ser fértil se bem tratado, mas igualmente estéril quando é ponto de fixação. É perigoso quando se acostuma a ela, se torna preferível à melhor das companhias; por mais que a busca seja por encontrar alguém que se ama, pois quando o piloto automático é ativado, a direção é pré-estabelecida, o destino é certo. Com Karrer é assim. Sua paixão impossível pela cantora não é suficiente para colorir sua vida, principalmente pelas investidas frustradas que o torna cada vez mais taciturno, sem objetivos; como os cães que vagam sem rumo alimentando-se de restos para sobreviver e continuar existindo. Ai a regressão.
Esse realismo que me cativou no filme. Me fez estarrecer por alguns minutos e pensar como estou conduzindo minha vida. - O que faço com a solidão que me acomete? A uso para criar ou me destruir (e o outro)? De que instrumentos posso utilizar para lidar com fases depressivas? Vou caminhar, escrever, ouvir música, passear com o cachorro? Ou reforço o quão desprezível é o ser humano, mesmo sabendo que nem todos o são; que a vida é frustrante e sem sentido, mesmo sabendo que há afetos e o sentido sou eu que encontro internamente? E quanto a você que me lê, pensas sobre isso? Ou o cotidiano é corrido demais que não te sobra tempo? Você vive ou apenas existe como os personagens e os cães deste filme?
Não há uma resposta universal a essas indagações. Cada um as encontra conforme surgem as próprias perguntas no percurso da existência, desde que estejamos dispostos a pensar sobre isso. "Pensar é transgredir a ordem do superficial" gosta de dizer Lya Luft. "O essencial não tem nome nem forma: é descoberta e assombro, glória ou danação de cada um".


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